sexta-feira, 29 de outubro de 2010

CORRENDO POR FORA - COLUNA NA CONTRAMÃO - Por: Nancy Nuyen



Correndo por fora...


por Nancy Nuyen*

Na rua, a escola. Nunca fiz parte da manada. Paguei - e pago - um preço por isso. O suficiente, suportável, nem mais, nem menos. Com dignidade.

Não teve viagem para a Disney. Não teve a roupa que eu escolhi. Não tive um quarto só meu, que as pessoas batessem pedindo licença para entrar. Roubei na feira ( a mãe fez devolver as bolachas e chocolates). Duas anemias até os 14 anos.

Andei de carrinho de madeira e rolemã (assim que se escreve?), bati, apanhei, quis estar nas festinhas das meninas bonitas que usavam minissaia e botas (até hoje gosto de usar isso, tipo "supletivo atrasado de fases da vida que não vivi e não me importo com o que pensam disso").

Estive nas festinhas da turma da rua de baixo. E curti. Quis ser bonita, quis ser inteligente, quis ter almoço com pai e mãe juntos, como vi, aos 8 anos na televisão que não era nossa. Porém, andei com amigas fadas imaginárias (será?) e tinha um mundo reservado delicioso.

Quis ter mais comida em casa e menos briga. Quis ver a mãe trabalhando menos, mais feliz e mais perto de mim. Quis ver o pai sem medo de ser preso. Quis ter o pai em casa. Mas eu era feliz brincando na rua, jogando "queimada" e caindo das bicicletas que não eram minhas.

Quis crescer logo, ganhar dinheiro achando que... enfim.

Na rua, a escola. Mais uma vez. Ditadura. Rock. Passeata. Gente legal, gente cruel, gente sem sal... ou seja: a vida. Faculdade paga com estágio. Violão, piano, dança, pintura... a arte que salva. O gosto pelas palavras, brincar com palavras, chorar e rir com palavras, acho que começou por aí.

Tentei, com todas as forças, construir uma família "normal" aos 21. Não deu. Descobri que a vida podia ser divertida mesmo assim. E até me diverti bastante, atrás do muro gelado/duro/cinza que construí dia após dia.

Pensei em morrer, pensei em largar tudo, queimar meus documentos e ir para um lugar onde ninguém me conhecesse e começar tudo de novo: novo nome, nova pessoa. As malas sempre prontas, as armas escondidas na bota. Morei sozinha, morei com tanta gente...

Chorei sozinha em banheiros imundos, de bares igualmente feios, chorei no ombro de gente não confiável e também no ombro de gente boa que não frequenta o high society. Xinguei Deus.

Tive banda, toquei, cantei. Fui dark, punk, gótica, hippie, pós- tudo (não necessariamente nesta ordem) e voltei a conversar com minhas amigas fadas. Expus meus quadros na feira de malucos. Dancei muito balé, até estourar o joelho direito.

Quis ser correspondente de guerra de um grande jornal. Não deu. Mas fiz muita coisa bacana em redações diferentes. Estudei matemática finaneira (sim, a menina que bateu na professora de matemática, no segundo ano primário) e fiz análise de mercado para um grande jornal. Fiz análise com terapêuta tb.

Cansei das redações. Fui estudar as redações e virei professora. Mas não se ensina nada nessa vida. Só a rua. Professora de mim mesma, compartilhando o que aprendo. Tenho uma necessidade quase que patológica de aprender, de encontrar sentido, de fazer perguntas novas.

A maior professora: a rua. A maior lição: Descobrir que um "sim" é a melhor resposta. E saber a hora correta de soletrar um santo "não"!

Percebi que um abraço cura qualquer dor de alma, um sorriso opera milagres. Silêncio faz bem. Gritar também. E quem não teve abraço na vida, precisa urgentemente aprender a abraçar.

Fiz as pazes com Deus (ou o com o que queiram chamar de). Fiz as pazes com meu cabelo cacheado, com minhas sardas e com esse meu jeito arisco, selvagem, estranho, arredio. Tirei as armas escondidas nas botas. Doeu. Foi a parte mais difícil. Vi que o sol nasce e a noite vem, chove e pára de chover, independentemente do que eu sinto. Tudo é muito mais e maior que meu umbigo.

Viajei pelo mundo e decobri que meu amor, meus amigos (que tb são família), minha família (não necessariamente a família consanguínea), flores, bichos, música e chocolate precisam estar sempre, no máximo, a poucas horas de distância.

Há alguma paz. E muita muita beleza. E muita força. E sobretudo há este espaço para falar e saber que as pessoas que aqui estão são os meus "brothers in arms".

Daí ouço no rádio que domingo tem que votar. Ai que preguiça.... Nunca fiz parte da manada, já disse.

A chamada "festa da cidadania" é tão pequena e medíocre perto da festa que é estar viva, olhando tudo -e mais um pouco - o que escrevi/viv aqui... Endendeu? Se não entendeu, também não tem problema. Está tudo certo. Eu é que precisava entender.



* Nancy Nuyen é jornalista, professora, roqueira, anarquista, livre e inadequada. Ainda contribui religiosamente (no melhor sentido da palavra - se é que existe) aqui no I.N.T.E.R.V.E.N.Ç.Ã.O.  H.U.M.4.N.A. ás 6.as feiras*







9 comentários:

  1. Nan. Como seu 'brother in arm', me sinto lisonjeado em te pedir uma coisa: me coloque na linha de frente. Nada vale mais á pena do que lutar, guerrear, sangrar e até morrer por aquilo que eu acredito. E é tão bom saber que existe, talvez, um exército de pessoas que idealizam o que eu idealizo. E que tbm estão dispostas á entrar na guerra. Mas por favor, cara amiga, não se esqueça: me posicione na linha de frente.
    Beijo.

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  2. Fantástico, Nan!!! Lindo mesmo! Emocionante!
    Tenho certeza que tudo isso fez de vc a grande mulher que se aprensenta aqui, para nós!
    Abraços!

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  3. Nada supera a vivencia e o aprendizado! Permitir-se errar e mudar! Belo texto!

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  4. Vocês são queridos! Obrigada pela leitura carinhosa, bjo!

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  5. Juliana Doretto31 outubro, 2010 12:46

    muito bom : )

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  6. Nancy, lindo lindo lindo texto. Linda cronica da vida. Fora isso, a qldd do pensamento, do texto, do conceito, uma grande qldd de vida. Da sua vida. Td isso fez com q vc se tornasse isso tudo. Essa imensidao de mulher, cidada, professora, amiga.
    Lindo lindo lindo...

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  7. Valeu Glau! Obrigada pela leitura. bjo!

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    1. MINHA CARA, E QUANDO ME REFIRO CARA É QUE É VALIOSA COMO ALGO QUE NÃO PODE SE ESTIPULAR VALOR, SEI QUEM SABES QUEM ESTÁ A ESCREVER COM A SUA HISTÓRIA ME AJUDA A ESCREVER MINHA HISTÓRIA, OBRIGADA POR SER QUEM VC É.

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Á vontade, como se estivesse em casa...