sexta-feira, 24 de setembro de 2010

“Coisas que não conseguimos pegar com as mãos” - COLUNA: NA CONTRAMÃO - Por: Nancy Nuyen



“Coisas que não conseguimos pegar com as mãos”



Nancy Nuyen*



A página em branco me olha.

E me obriga a olhar aqui, dentro. No entorno, a vida.

Em breve teremos eleições. Não agüento mais nem pensar no assunto. Serei obrigada a votar.

Em breve será Natal. Gosto das luzes na cidade, de montar a árvore colorida. Porém, a correria insana para satisfazer o consumo e fazer o “social” eu dispensaria.

Depois tem o Ano Novo, mais tranqüilo: descobri que posso começar o Ano Novo a qualquer momento. E que o mundo não acaba no dia 31 de dezembro e nem começa no dia primeiro de janeiro.

Na seqüência vem o Carnaval, que não curto, principalmente, pela “obrigação geral de euforia nos dias estabelecidos”.

Assim passam os dias.

Hoje tenho a clareza de saber que o que fica – e jamais será roubado – são “as coisas que não conseguimos pegar com as mãos” ou traduzir completamente. São as melhores. Um olhar, um gesto, um sorriso no cantinho da boca, aquele entardecer e essa enorme lua cheia linda de hoje.

São sensações e sentimentos, a alegria infantil de tomar um café com a boca lambuzada de chocolate ou a sorte - sou afortunada - de ficar feliz pelos amigos, torcer por eles e agradecer por existirem. Há, ainda, o alívio de não ter urgências. E a delícia de ficar em silêncio, só ouvindo o tiquetaquear de um coração.

Assim passam os dias.

Algumas respostas não são muito certas: aonde vai parar aquela folha que o vento carrega num bailado, para lá e para cá? É tão bonito esse movimento!

Onde colocar tantas sensações e sentimentos de beleza e plenitude? Deveriam ser guardados em caixinhas, para usar nos dias mais cinzentos? Ou foram feitos, mesmo, para sabermos que eles existem e são possíveis? Como expressar essa doçura que toma conta de algumas horas? E a leveza de se saber em paz?

Mesmo assim, não perco a noção do todo, do entorno: um homem vasculha a lixeira procurando restos de alimento. O cão espera, ao lado. Depois dividem, homem e cão, o que foi encontrado.

Penso num país continental, com uma costa enorme, mar, terra, rios.

Por que, então, alguém precisa procurar comida no lixo? Vocês sabem, como eu sei, responder a essa questão e, ao final, tudo gira em torno de uma palavra: poder. Mais e mais poder, pela simples posse ou pela vaidade e, principalmente, pela mediocridade.

No mundo neoliberal e global, poucos se mobilizam para levantar bandeiras das “coisas que não conseguimos pegar com as mãos” (solidariedade, dignidade, bondade).

Só dá para fazer a minha parte. Assim passam os dias.

Porém, antes de ficar triste com esses últimos pensamentos acontece, numa rápida olhada, um momento – mágico – da série “coisas que não conseguimos pegar com as mãos”:

De repente, o cão abana o rabo, feliz, e lambe o homem. O homem sorri e afaga o cão. E por alguma razão, da série “não dá para traduzir completamente”, eu também sorri.

Amém.




* Nancy Nuyen é jornalista, professora universitária, anarquista, roqueira e um dos orgulhos do I.N.T.E.R.V.E.N.Ç.Ã.O.  H.U.M.A.N.A.. Colaboradora ás sextas-feiras também.*

























4 comentários:

  1. Nancy do céu... estava lendo seu texto(normalmente o faço antes de publicá-los)e quando acabei, igual um equilibrista, amparei uma lágrima no olhar. É, só que entende, entende. Muito íntimo, muito humano. Parabéns, minha amiga...e não é só pelo texto, mas por ter a visão apurada sobre fatos ''corriqueiros''. Nós do blog agradecemos. Queria sinceramente que o mundo tivesse acesso ao que você escreve.

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  2. Meu Deus...não teve uma lagrima,foi uma cachoeira..Todos nós precisamos levar uma bordoada dessas,pra conseguir ver as coisas não só de forma dadaista (isso é muito bom,aquilo é muito ruim).Não existe só alegria no Natal,porem armar a arvore com a familia,passaer,pela cidade é tudo de bom.Hum homem pegando comida no lixo é deploravel,mas dividir este alimento com seu cão (que abana seu rabo para demostrar seu amor pelo dono)nós faz ver felicidade onde achamos que só existe mizéria.Chocolate engorda,traz diabetes,ansiedade,mas quando esta nos labios de quem voce ama,todo lambuzado por um beijo:...... nem sei o que dizer.Sentimentos qoe não se explicam...Coisas que não são paupaveis.Teve um cara um cara que escreveu uma canção sobre isto, (eu acho que ele tocava piston e trombone de Vara). What's a Wonderfull World.Mas querida a sua visão não é utópica.Muito obrigado.

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  3. Obrigado não me sinto só!!!

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  4. Amigos, obrigada por lerem e e compartilharem seus sentimentos e impressões comigo! Vocês são parte disso. Beijos!
    Querido, sem palavras (Smack).;)

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Á vontade, como se estivesse em casa...